terça-feira, 30 de junho de 2009

Minuto



Hoje quer abusar da palavra. Sente o direito de tomá-la como sua e, deste modo, descrever tudo aquilo que lhe vai na alma. É isso que vai fazer.

Talvez um momento de melancolia o justifique, mas a verdade é que se sente frágil. Abalada por todo e qualquer discurso comum, sensível ao mais ínfimo dos pormenores correntes, vê-se envolta por um universo claramente organizado segundo leis rotativas, variáveis de ser para ser. Observa a passividade de uns, a conformidade mediante a mediocridade, e a ânsia pela realização de outros, a vontade de crescer e vencer. Entre o antagonismo, instala a sua posição. Analisa ambas as direcções e só aí percebe o quão dependente se encontra das suas virtudes, bem distante do eclectismo que ambiciona.
À margem da reflexão, depara-se com realidades concretas: transformações desmedidas, descontrolos permanentes, perdas inevitáveis. Não há acção que possa executar, não tem legitimidade para alterar o rumo do que quer que seja. Reconhece a rectidão do destino, cabe-lhe apenas aceitar, cooperar. Mascara a inquietação que transporta, apresenta o semblante habitual. Assim ditam as normas, assim o fará. Mais tarde? Logo se verá…





Não é para ser bonito, é só para ser.

sábado, 13 de junho de 2009

Adereços


Vemos. Mexemos. Cheiramos. Ouvimos. Respiramos. Sentimos. Vivemos.
Cores. Espaços. Odores. Sons. Ambientes. Emoções. Histórias.
Ontem. Hoje. Agora. Logo. Amanhã. Dentro de dias.
Mantemos. Mudamos. Queremos. Afastamos.
Eu. Tu. Ele. Ela. Nós.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Respira


Agora sente medo. Já se apercebeu de como o dia-a-dia é circular, de como o que já foi volta a ser. O ponto de partida rapidamente se torna o limite dos seus receios.
Fá-lo incontrolavelmente, sem o mínimo pudor. Consciente, irresponsável, impotente. Agarra mitos, procura quês. Não consegue.
Rende-se ante a tentação, desculpando-se com pessoas ou momentos. No seu íntimo, reconhece a fragilidade, atenuando-a com um simples “amanhã, tudo muda.”, em vão. Basta!


Mais do que um grito de revolta, necessita de revoltar todos os gritos. Só assim, vencerá.

sábado, 28 de março de 2009

Visão

Desejava relançar o seu diálogo. Encontrar o tema ideal, retomar o assunto. Após meses de quietude, fazia um grande esforço para exprimir-se.
Nos últimos tempos, havia sido criticada pela circularidade do seu discurso ou, até mesmo, pela complexidade dos seus termos. Revelava-se incapaz de sucintamente abordar qualquer questão. Alvo de infâmia, objecto de escárnio, a pouco e pouco foi modelando a sua identidade, quiçá abdicando mesmo dos seus padrões. Julga-se que agora é outra. Talvez.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Da janela


Sentia-se a agitação das ervas. O vento soprava furioso, enquanto o céu cuspia largas cordas de água.

Sentou-se no beiral da janela. Gostava da desordem a que assistia. Atenta, analisava até ao mais ínfimo detalhe o mover de cada folha. No entanto, o baloiçar dos troncos das árvores mais sólidas confundiam o seu pensamento.
Todas as mudanças a apoquentavam, temia o desconhecido.
Tal qual um recém-nascido necessitava de protecção, também ela procurava acalmia. Desdenhava incertezas, já que o doce sabor da ilusão a fazia acreditar que aquela tempestade não mais voltaria.

A noite avançava veloz. Inquietas, as nuvens chocavam, emitindo um rosnar ameaçador. Ela sentia medo.
Desceu da janela e logo se refugiou no conforto do cobertor. Ah, como era bom o cobertor! Lançou um olhar sobre o céu. Não lhe parecia tão agressivo, visto dali.


Poisou a cabeça na almofada e adormeceu.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Nódoas


Perante a diversidade que, diariamente, ousa completar a sua existência, um punhado de semelhanças marca a diferença.
Transporta em si um risco de dor, uma nódoa de esperança, um motivo de vida. Aspira liberdade, anseia autonomia, deseja responsabilidade. Quer tudo e, simultaneamente, luta pelo nada. Idealiza pessoas, projecta sonhos, constrói um mundo imaginário: sem regras, longe de fazer sentido. O ambiente é meticulosamente planeado e os sentimentos seleccionados. Toda uma vida é previamente desenhada.
Mais cedo ou mais tarde, eis que surge o acaso. Traz consigo pessoas inesperadas, sonhos adormecidos, mundos inacabados. Tenta, a todo o custo, perturbar a estabilidade até aqui adquirida e rompe, sem autorização, as muralhas outrora criadas. Atónita, recebe-o receosa, no entanto, para não parecer indelicada, vai, pouco a pouco, satisfazendo suas vontades, como se de um ilustre se tratasse. Quando se apercebe, já ele dominou, já ele criou o seu próprio mundo e ela, impávida, recomeça uma vida segundo as suas leis.